UM TRADUTOR MEDIEVAL - FELIPE LINDOSO

16/12/2014
 
(Aos tradutores brasileiros, que tornam acessíveis a nós os livros do resto do mundo)
 
Os tradutores conhecem – ou, pelo menos, ouviram falar de São Jerônimo – considerado como seu padroeiro na tradição católica. Jerônimo, ao que conta, traduziu a Bíblia do grego e do hebraico para o latim, consolidando a versão que ficou conhecida como a Vulgata, o texto básico da Igreja Católica para a Bíblia.
 
Recentemente tomei conhecimento de um sucessor de Jerônimo. Ou, melhor dizendo, de um antecessor de Lutero na tradução da Vulgata para uma língua vernacular.
 
No último encontro do Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira, que aconteceu em novembro, convidamos (sou um dos curadores do programa), o tradutor François Weigel, que verte para o francês obras originais em português.
 
O Conexões é um programa que já está em seu sexto ano e constrói um banco de dados com informações sobre quem pesquisa, estuda, ensina e traduz literatura brasileira no exterior. Esse banco de dados de acesso público, já registra informações de mais de 300 “mapeados”, como dizemos. Nos encontros, que acontecem anualmente, reúnem-se para discussões convidados internacionais e nacionais, que estabelecem redes – conexões – e trocam ideias e experiências sobre o que fazem.
 
François Weigel é francês da Alsácia-Lorena, essa região que já trocou de mãos entre a França e a Alemanha várias vezes no decorrer dos séculos. A região fala dois dialetos de origem alemã, o alsaciano e o frâncico, que na prática não se distinguem, conhecidos ambos como alsaciano.
 
Na sua apresentação, Weigel começou com uma introdução apresentando o monge franco Otfried, que morou em Wissembourg, na Alsácia, onde traduziu os Evangelhos, a partir da Vulgata, para omittelalthochdeutsch, ou seja, para o “alto-alemão médio”, antecessor do moderno alemão, e que é mais próximo do alsaciano moderno que do alemão moderno. Por essa razão, o texto medieval pode até ser compreendido, em grande medida, pelos modernos alsacianos. Na época, uma língua ainda sem regras, simplesmente falada pelo povo. Otfried trabalhou nessa tradução por volta do ano 870. Ou seja, mais de 400 anos depois que São Jerônimo estabeleceu a Vulgata.
 
Otfried justifica sua empreitada assinalando: “Por que os francos, a exemplo de outras nações, não cantariam em sua língua a glória de Deus? São tão bravos quanto os romanos, e ninguém pode pretender que os gregos possam lhes disputar o prêmio da coragem”, etc. Como era mestre-escola, Otfried queria dispor de meios adequados para o trabalho de catequese, e daí seu empreendimento.
 
A tradução do monge, entretanto, é peculiar.
 
Apesar de baseado na Vulgata, ele não traduziu todas as versões de modo integral. Escolhia de cada uma das versões o trecho que mais lhe convinha, e parafraseava o que achava mais interessante. Ademais, inseria comentários, às vezes espirituosos, às vezes morais ou teológicos, cuidando de destacar esses acréscimos com tinta de cor diferente.
 
Mas o monge queria permitir que os francos se apropriassem da “Boa Nova” em seus próprios termos.
 
Para isso, ele traduziu em versos, recontando a história de modo a retratar de forma vivaz os personagens.
 
Mas vai muito além disso, adaptando cenários e passagens para situações mais compreensíveis para a população à qual se destinava a “tradução” (que nessas alturas bem podemos colocar entre aspas). Assim, na geografia, os desertos do Oriente se transformam em florestas, e é nelas que João Batista vai jejuar. Maria, ao receber a visita do arcanjo Gabriel, tem os traços de uma nobre dama frâncica. Cristo é um rei do céu, mas igualmente um rei da terra, e em uma perspectiva germânica: é um rei de raça nobre, poderoso, corajoso, forte, e vai com uma escolta para o Getsêmani. Além do mais, Pilatos aparece como um duque, e o bom monge coloca Jesus em relações quase como suserano em relação aos seus discípulos. E as bodas de Caná são nada menos que um festim guerreiro germânico.
 
Até mesmo passagens do Evangelho que poderiam ferir as suscetibilidades da mentalidade germânica da época, como o perdão das ofensas, são cuidadosamente omitidas na versão.
 
François Weigel, em um texto que gentilmente me enviou, e que é a base desta recensão, assinala que Otfried é realmente um “tradutor-autor” que, longe de ser um compilador, constrói sua obra em uma chave própria. Por exemplo, diz Weigel, Otfried “constrói simbolicamente o conjunto dessa “Harmonia dos Evangelhos” em cinco livros, que correspondem aos cinco sentidos”. Ele “se preocupa profundamente em dar corpo ao texto de origem, torná-lo compreensível, permitir sua compreensão e sua encarnação na sociedade e no mundo dos francos, tão diferente do mundo palestino! É uma criação pessoal que tem como objetivo final se colocar completamente a serviço do texto original ’traduzido’”.
 
Assim, considera Weigel, “Otfried já anuncia o ‘intelectual’ (homme de lettres), aquele que reflete, constrói, estrutura, que percebe e resolve as dificuldades de sua empreitada. Como poeta que é, esse tradutor ambiciona cantar ‘como um pássaro em seu galho’, e escreve ‘prefácios’ para apresentar, expor e explicar”. [...] “Ele certamente escreveu para a glória de Deus, mas também pela dos francos, povo tão corajoso e valoroso, segundo ele, quanto os gregos ou os romanos. Quer escrever um belo poema em frâncico que possa rivalizar com as obras da Antiguidade, e sua obra aponta um certo orgulho nacional e nele se combina o cristianismo e o amor à pátria”.
 
O monge Otfried é um personagem singular. Sua “tradução” combina duas exigências que, para o tradutor moderno, são difíceis de conciliar. A primeira é a de “traduzir” o espírito, a essência do que, para ele, era o cerne da “Boa Nova”. Mas queria fazê-lo com um grau de autonomia enorme, colocando-se ele mesmo como autor, poeta e criador autônomo. Por isso mesmo, segundo Weigel, Otfried é considerado por alguns especialistas como o primeiro autor da literatura alemã, antes mesmo da literatura de amor e cortesia.
 
Já mencionei, em outras ocasiões, como a tradução é um componente essencial na formação das línguas modernas. As traduções – em especial de textos clássicos e bíblicos – consolidam a forma da língua vulgar, abrem espaço para a criação e difusão das obras literárias, científicas e de formação, transmitidas de forma independente do latim ou do grego, privilégio das elites cultas, eclesiásticas ou da nobreza. Dessa forma, a tradução é uma contribuição importante para a criação do povo, como tal e, assim, das bases da democracia.
 
Agradeço comentários e sugestões no blog www.oxisdoproblema.com.br.

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